A tirania das marcas brancas
No outro dia precisei de realizar umas compras rápidas, uma utilitária e outra hedonista – arroz e chocolate, respectivamente. A minha ideia era comprar arroz da marca Malandrinho e um chocolate com avelãs da Nestlé. O tempo era escasso, faltava meia hora para o supermercado fechar e a loja era um Pingo Doce. Mas podia ser um Continente, um Dia ou outra insígnia qualquer.
Chegado à secção do arroz, deparei-me com uma variedade sem dúvida invulgar. Encontrei arroz do Uruguai, arroz para Risotto italiano, arroz Jasmine da Tailândia, arroz paquistanês Basmati, um arroz agulha “Europa” e, esquecia-me, um arroz carolino e um vaporizado. Quase 80% do linear de arroz estava preenchido com a marca Pingo Doce. Identifiquei algures uma brecha com arroz Cigala, como que pronto para uma emboscada ao consumidor (marketing de guerrilha oblige).
Ao chegar à secção dos chocolates, o mesmo guião, variando apenas os actores: chocolates. Numa ânsia de copiar a grande variedade de chocolates que existem, lá estava bem vincada a família Pingo Doce, com os seus pralinés, frutos secos inteiros, chocolate de leite, amargo, etc… Alguns chocolates Nestlé – poucos – mas nenhum era o que eu queria (chocolate com avelãs, apenas havia com amêndoas).
Penso que todos conhecemos a importância dos produtos de marca branca. A sua relação preço/qualidade é, normalmente, muito satisfatória. O facto de estarem apoiados numa empresa conhecida, dá segurança aos clientes no escrutínio das boas práticas de venda e até na reposição de situações de insatisfação com o produto. Alguns luxos das marcas de fabricante, passaram a poder ser comprados a um preço mais em conta. Talvez, afinal de contas, as marcas brancas tenham permitido sonhar: é possível comprar um iogurte grego, sem se ver grego na altura de passar na caixa. Além do mais, as marcas brancas vieram equilibrar uma certa tirania vigente há algumas décadas, a das marcas originais. Entraram devagar na vida dos portugueses, e o hábito, as crises e a melhoria de qualidade encarregaram-se de as tornar opções válidas. Vivíamos felizes.
No entanto, este episódio deixa-me pouco confortável: as marcas brancas já não representam para mim qualquer equilíbrio, antes um desequilíbrio na oferta vigente. Fora de outras lutas que certamente são muito importantes (até que ponto as marcas de fabricante estão a ser estranguladas com a imposição de marcas brancas no mercado), deixo o espaço seguinte para demonstrar que o exagero de marcas brancas são um erro, do ponto de vista do Comportamento do Consumidor. E essa tirania pode levar a uma perda “silenciosa” de clientes. Saliento, no entanto, que tudo isto pode ter sido um caso isolado – certamente os Pingo Doces não são todos assim. Mas o princípio de que falo, esse penso merecer reflexão.
A falsa diversidade
Há vários estudos que falam num fenómeno denominado stress da escolha. Ou seja, o consumidor sofre quando a oferta é muito variada, pois a decisão pelo melhor produto comporta um trabalho cognitivo intensivo. Nesse contexto, marcas com poucos produtos mas perfeitamente definidos e coerentes podem ser um “alívio” para o consumidor: escolhe o que quer, com menos esforço. No caso do arroz de marca branca que descrevi, o Pingo Doce:
- Apresenta uma grande variedade de arrozes de outras origens geográficas. Sendo o Pingo Doce uma empresa para o cidadão comum (o célebre 1º de Maio a 50% reforçou essa ideia), não há vantagem em apresentar uma variedade geográfica ou exótica – o cidadão comum apreciaria mais uma variedade em termos de tipos de arroz, em termos de preços, em termos de quantidade de produto, bundles ou outras. Suponho que escolher entre um arroz Basmati ou um Uruguaio não faça parte dos objectivos urgentes da esmagadora maioria dos portugueses. Last but not least, ao contrário do sentimento dos portugueses, em que o que é português é valorizado, a marca aposta em arrozes de outras paragens.
- A variedade apresenta um alto grau de experimentalismo, ou seja, o/a cozinheiro/a não é colocado perante o desafio de colocar ou não ervas de Provence no arroz – é confrontado com o cozinhar de um arroz quase desconhecido. Tal experimentalismo deve ter o seu espaço na diversidade de um supermercado, mas não representar o grosso da oferta. Sim, 99% das vezes os portugueses cozinham por rotina, o resto sim, talvez seja experimentalismo.
Reactância
Se eu jogasse arrozes ao ar como se fossem moedas, a probabilidade de sair Pingo Doce seria de 90%, comparativamente com outras marcas. E aqui entra um tema sensível que se chama reactância (Brehm, 1966). A partir do momento em que o ser humano se sente manietado ou limitado, ele tende a reforçar o seu desejo de liberdade. A predominância de marcas brancas em várias secções de hipermercados ou outros sectores da economia, podem levar a uma debandada de clientes para outras lojas, onde hajam marcas brancas e marcas de fabricante. De salientar que o sentimento de perda de liberdade, neste caso, pode ser acentuada se esta parecer não ter uma regra válida que a justifique (colocarem-me à frente arrozes de outras paragens e quase nenhum português não é válido para mim), se o tempo for limitado (eu dispunha de meia hora, mas podia ter apenas 5min…) o espaço exíguo (haver muita gente a “entupir” os corredores), etc… Mais constrangimentos, maior necessidade de reposição da liberdade perdida.
O factor memória
Não foram as marcas brancas que me fizeram perceber o quão maravilhoso é o chocolate adicionado ao leite. Foi o Toddy. Nem as colas do Pingo Doce me inspiraram a frescura da Pepsi ou da Coca Cola. O cérebro humano tem uma capacidade extraordinária de memorização, incluindo de paladares. Este sentido é de superior importância para um supermercado, dado que a área alimentar é hegemónica. O consumidor colecionou ao longo da sua vida um conjunto de “heurísticas” que o ajudam a decidir em muitos momentos. “Chocolate é Nestlé”, é uma delas. Essas bases sensoriais são importantes, e um refúgio quando sentem o seu processo de decisão ameaçado. Na dúvida sobre um arroz, vou para Malandrinho ou outro que eu considere similar, não me aventuro num arroz para risotto. Se não houver, vou procurar noutro lado.
Categorização
O Pingo Doce ou o Continente são supermercados, vendem uma grande variedade de produtos e marcas, não uma grande variedade de produtos de uma marca. Se assim fosse, seriam brand stores como a Apple ou a Hello Kitty – eu até gostaria que existisse uma brand store Continente, por ex. Não me chocaria. No entanto, choca-me que eu categorize uma empresa como sendo um supermercado, mas que se comporte quase como uma brand store, na medida em que gera confusão em consumidores como eu.
O drama do meio termo
As marcas de fabricante criam os sonhos, as marcas brancas tornam esses sonhos medianos, como a 2ª lei da termodinâmica faz às interacções de energia. Em linguagem comum, se tivermos dois recipientes, um com água quente e outro com água fria, e vertermos ambos para um 3º recipiente, obter-se-á água a uma temperatura “média”. Assim sendo, enquanto as marcas de fabricante geram condições normalmente excepcionais e únicas, as marcas brancas amenizam essas características, tornando os produtos em opções medianas, para situações medianas e companhias medianas. Se levarem alguém importante lá a casa, não fica bem colocar na mesa vinho alentejano Pingo Doce. Seria mais interessante superar a curva de Gauss e apresentar algo acima da média, um Esporão ou um Cartuxa. A tirania das marcas brancas transforma os consumidores em apreciadores pouco exigentes. Há um empurrar para compras de pouca implicação: “traz Pingo Doce ou Continente” e já está. O prazer de brilhar com uma escolha de mercearia morre como o surf num mar flat. Não sobra muito por onde se evidenciar o talento do shopper. E a diferenciação social, que é possível através daquilo que compramos, que por muito que neguemos é um prolongamento da nossa imagem, fica comprometido se apenas tivermos disponíveis marcas brancas. Se somos o que compramos, tendemos a ser cada vez mais iguais aos outros.
Talvez seja altura de criar, na lei, um espaço de reflexão sobre a quota de produtos de marca branca que uma grande superfície pode vender. Não quero com isto dizer que elas deixem de existir; trata-se antes de não existirem em excesso. Muitas pessoas devem sentir-se sem opção de escolha, tal como eu no arroz e chocolates. Isso não constituirá uma violação dos meus direitos enquanto consumidor?
E o leitor, o que acha?
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